MALANDRO NAVALHA, O SALVADOR DOS MORROS.
Malandro Navalha, o Salvador dos Morros.
No morro eu nasci,
no morro me criei,
Do morro não fugi,
e no morro morrerei.
Me chamo Navalha o Malandro,
em Ogum entreguei minha fé,
ando pelo morro gingando,
assim como faz meu mestre, Pilintra, o Zé.
Uso minha navalha para curar,
doentes que do morro não podem descer,
a Oxalá peço para me ajudar,
a essas doenças do morro esquecido vencer.
Não temo a justa nem a rádio patrulha,
meus irmãos do morro continuarei a ajudar,
esse caminho do bem que tanto me orgulha,
com Zé Pilintra junto estarei sempre a caminhar.
Sou Malandro Navalha protegido de Ogum,
tenha sempre cuidado quando me chamar,
no Terreiro de Umbanda chego em nome de Olorum,
mas se me pedir o mal posso te derrubar.
É sempre encantadora as giras dos Malandros e Malandras,
normalmente com a presença iluminada e carismática do grande Mestre Zé
Pilintra.
Mas hoje vamos falar da história de um grande mestre também na
linha da malandragem.
Uma história que vai nos mostrar o quanto é linda essa linha, como
é que nosso personagem foi escolhido para atuar como Entidade de Luz
nos Terreiros de Umbanda, como são caridosos para com aquele que
necessita, como era usado a lábia da malandragem para ir em busca de
ajuda aos menos favorecidos, enfim, uma história para tirar a falsa
impressão de que um Malandro seja uma Entidade que faz o mal.
Vamos falar de nosso amigo de luz Malandro Navalha, companheiro de
Seu Zé Pilintra nas andanças pelos morros, pelo bairro da Lapa ou por
toda a cidade do Rio de Janeiro, buscando condições e materiais para
assim poder auxiliar aos moradores dos morros lá pelo início do
século XX.
Nascido e criado nas ruas e vielas da Lapa, bairro
tradicionalmente conhecido pela boemia, Zé da Lapa, como era conhecido
na região, tinha um incômodo pessoal, não entendia o porque da
diferença entre as pessoas, ou pela posição social, ou pela cor da
pele.
Ao ver a descriminação dos moradores dos morros, ao ver o desprezo
que muitos tinham pelos negros, ao ver os males físicos, que por
muitas vezes seriam tão simples de serem curados dizimando milhares de
pessoas sem uma chance de cura, pelo simples fato de serem de raças
diferentes, deixava nosso personagem Zé da Lapa muito entristecido.
Ele sonhava com um mundo melhor, mundo esse em que todos se
respeitassem, se ajudassem, se entendessem.
Mas a realidade era totalmente ao inverso disso. Os moradores dos
morros, normalmente negros que sofreram nas amarras de seus senhores,
que hoje estando em uma falsa liberdade, sofriam e morriam, não mas
como escravos de senhores, mas sim escravos da sociedade branca,
preconceituosa, racista e podre.
O sentimento de caridade e justiça de Zé da Lapa começou a virar
algo concreto quando ele conheceu uma pessoa que tinha o mesmo
sentimento dele. José Amadeu da Silva, um pernambucano arretado, que
chegou ao Rio de Janeiro após muitas aventuras de sua vinda do
Nordeste do Brasil.
Ao se conhecerem, numa dessas noites de boemia no bairro da Lapa,
e entenderem que os dois tinham o mesmo pensamento, José Amadeu e Zé
da Lapa se uniram para levar ajuda aos menos favorecidos.
Zé da Lapa era astuto, carismático, inteligente e extremamente
habilidoso ao lidar com os homens de farda. Chegava como quem não
queria nada, e de conversa em conversa já virava o grande amigo
brincalhão no meio dos policiais que tomavam conta das entradas dos
morros, para não deixarem entrar medicamentos, comida e água aos
moradores da parte mais elevada da cidade. Fazendo isso, distraía os
homens da lei enquanto seu amigo José Amadeu e todos os outros
"malandros" e "malandras" agiam sorrateiramente, subindo e descendo os
morros levando suprimentos a quem necessitava.
Zé da Lapa também aprendeu a cuidar de ferimentos, e por muitas
das vezes surpreendia a todos com a pericia do manejar sua navalha na
limpeza de grandes ferimentos, abrindo a carne e retirando todo o
edema contido na parte do corpo machucado.
Ele fazia isso com uma simplicidade extrema, se utilizando da
própria cachaça para a limpeza dos ferimentos e da sua navalha,
evitando assim qualquer tipo de infecção.
As lendas dizem que nenhuma pessoa tratada pela navalha de Zé da
Lapa sentiu a mínima dor, tanto nos cortes quanto nas limpezas, e ele
fazia isso rotineiramente, sempre conversando e sorrindo para a
pessoa em tratamento de suas escaras.
Após fazer esse trabalho de caridade por muitos anos, ele passou a
ser conhecido como o Malandro da Navalha Sagrada, e por esse motivo,
ao virar uma Entidade de Luz nos trabalhos da Umbanda, passou a ser
chamado de Malandro Navalha.
Malandro Navalha teve seu desencarne ainda com pouca idade, ele
mesmo não confirma a quantidade exata, mas cremos que foi entre os 30
a 35 anos de idade terrena.
E isso aconteceu numa noite de inverno em plena Lapa, local que
ele amou e viveu toda a vida.
Como sempre estava Zé da Lapa em busca de fazer a caridade, nas
mãos levava alguns medicamentos e a tradicional garrafa de marafo,
também levava em sua cintura sua inseparável navalha cor de prata. Ao
chegar na subida que o levaria ao morro onde dezenas de pessoas o
aguardavam para cuidados com os ferimentos, Seu Malandro Navalha
observa um grande tumulto de pessoas, notando que dentre elas estaria
algumas dezenas de homens da lei. Ao se aproximar mais um pouco, ele
se depara com uma imensa covardia que o deixara em êxtase. Um dos seus
companheiros de jornada em prol da caridade, que era conhecido como Zé
Preto, um Malandro sorrateiro,, muito astuto, mas muito ligado no
sentimento profundo de amor que tinha por sua companheira e ´por seus
três filhos, que para ele era toda a riqueza que tinha em sua vida.
Zé Preto estaria em luta corporal com alguns homens da lei, em seu
lado sua companheira demonstrando um extremo desespero, implorando
clemência a sua família, e mais atrás seus filhos prisioneiros, cada
um deles nas mãos de um policial.
O motivo de todo o tumulto fora que os filhos de Zé Preto foram a
área baixa da cidade em busca de água fresca para ser levada a um
ex escravo muito velho e adoentado, que era tomado por um mal que o
deixava em condição febril de grandes proporções. As crianças ao verem
a situação decidiram ir em busca de água, e se depararam com o
grupamento, que logo entenderam qual era a intenção dos meninos e os
agrediram além de despejar por terra toda a água que levavam.
A mãe das crianças ao ver toda a cena foi em defesa de seus
filhos, que foi espancada cruelmente e jogada ao chão, e mesmo ao chão
não deixou de ser espancada.
Ao ouvir os gritos de dor de sua amada e o choro desesperado de
seus filhos, Zé Preto corre em defesa de sua família, e entra em luta
corporal com alguns homens de farda.
Foi nesse momento que Zé da Lapa, o Malandro Navalha chega, e
nesse mesmo momento o filho caçula de Zé Preto se solta das mãos do
seu prendedor correndo de encontro a sua mãe que ainda se contorce de
dor ao chão. Nessa fuga o soldado arma seu mosquete para alvejar a
criança, e nesse momento Zé da Lapa se joga sobre o menino o
protegendo do chumbo ardente da arma do homem da lei, mas a munição
penetra o corpo de Zé da Lapa chegando até seu coração, fazendo assim
uma dor física descomunal, mas uma paz em seu espírito por ter
conseguido livrar da morte uma pequena criança inocente que só
desejava matar a sede de um velho negro febril.
Nos dias de hoje Senhor Malandro Navalha trabalha fazendo a
caridade nos terreiros de Umbanda. Demonstrando a paz, o amor,
mostrando caminhos de luz a serem seguidos, ensinando a seus
consulentes que Umbanda não é para fazer o mal aos semelhantes, não é
para destruir lares, não é para fazer amarrações. Ela está presente em
nossas vidas para nos religar a Zambi, nosso Pai Maior. E aqueles que
forem ao encontro de nosso Malandro Navalha para pedir o contrário,
será tentado ser demonstrado o erro que estão fazendo, e se mesmo
assim não aprenderem com o ensinamento do amor, poderá ter uma lição
constituída na dor.
Assim falou Senhor Malandro Navalha.
Saravá todos os Malandros!
Saravá Senhor José Pilintra!
Saravá nosso amigo fiel de todas as horas, Senhor Malandro Navalha!
Carlos de Ogum.