O VAQUEIRO TANGERINO DO SERTÃO

23/03/2017 11:31

 

 

tanger boi
(Percy Lau)
O TANGERINO
Octávio Pinto
AINDA não se escreveu a história dos nossos tangerinos. Poetas e cantadores já enalteceram a personalidade e a bravura dos vaqueiros. Rui e Euclides da Cunha descreveram em páginas imortais o "estouro das boiadas". Mas, tangerino continua ainda desconhecido, apesar de ter tido um passado brilhante e uma vida tão cheia de heroísmo e sacrifícios.
Quem conhece o sertão nordestino e as feiras de gado não pode deixar de admirar a figura do tangerino, que difere muito da do vaqueiro. Este é imponente e admirável em sua indumentária toda de couro, impressionando ainda mais quando esporeia o fogoso corcel que levanta as patas para o ar como se quisesse dar um salto mortal, que salta, que rodopia, que corre, ressaltando a segurança do montador. O vaqueiro é intrépido, bravo, audacioso, ágil e forte. Sabe montar com destreza e vive em correrias desenfreadas atrás dos bois, penetrando às vezes no mato fechado por onde muito mal passou o garrote bravio. No curral ou no campo laça o touro de longe e nas vaquejadas em louca disparada derruba o novilho pela cauda, num golpe audacioso e rápido, conquistando os aplausos de toda a assistência. Dai, as lendas, as histórias e as cantorias do sertão sobre a coragem e as façanhas dos vaqueiros. Até as vaquejadas são descritas com um colorido bem forte de entusiasmo e intrepidez, onde se procura a cada momento e a cada lance salientar o valor dos nossos destemidos vaqueiros. E é realmente, um espetáculo digno de admiração e louvor, que arrebata os mais vibrantes aplausos dos espectadores.
O tangerino não anda vestido de couro nem sabe montar. Traja sempre roupa comum, chapéu de palha de carnaúba, alpercatas, chicote, trazendo às costas a rede dentro de um saco de couro e os utensílios para preparar as suas refeições. Em seus trajes característicos e sua vida nômade, assemelha-se a um cangaceiro desarmado. Anda mais de um mês a pé em cada viagem, conduzindo de muito longe as boiadas para as feiras de gado, enfrentando a terrível soalheira que asfixia e que queima a terra, transformando aquela região num inferno de brasas.
E chega coberto de poeira das estradas, estropeado, sujo, barba e cabelos crescidos, às vezes esfomeado, parecendo mais um bicho do que um homem. Dorme no mato ou nos currais das fazendas onde arma a sua rede que nunca foi lavada, enquanto o gado fica pastando. Mal surge, porém, a madrugada, ei-lo novamente a caminho, cruzando estradas, atravessando rios, matas, serras e montanhas, viajando muitas vezes à noite para alcançar um pouso melhor, onde os animais encontram água para saciar a sede de uma viagem de muitos dias sem descanso.
Quando um dos bois está estropeado pelos espinhos, o tangerino calça-lhe umas alpercatas especiais, aliviando o sofrimento do pobre animal que agora já pode suportar a longa caminhada. E se sucede uma rês se extraviar do bando, o tangerino não se inquieta. Êle conhece todos os recantos do sertão e as manhas que esses bichos têm. Sabe onde a rês se escondeu ou onde ficou perdida. E vai certo ao seu encalço. Quando o boi é bravio, o tangerino coloca-lhe uma máscara de couro ou, então, amarra-lhe um pau no pescoço, deixando uma das extremidades tocar no chão, dificultando, deste modo, o movimento do animal, que é obrigado a andar devagar. Para tudo o tangerino encontra um jeito, contanto que a boiada chegue sem novidades ao seu destino. Êle sabe também o mato que o gado não deve comer e aquele que serve de remédio. E com aquela sua cantilena característica, aqueles gritos prolongados e monótonos que reboam pelas quebradas das serras, o tangerino vem trazendo de muito longe as boiadas para as nossas feiras, ganhando por esse serviço tão árduo e perigoso, salário insignificante.
Quando as feiras terminam ao cair da tarde, ei-lo de volta para as fazendas do Ceará, do Piauí, da Bahia ou de paragens mais longínquas, em busca de novas boiadas, percorrendo a pé centenas de léguas, numa faina para êle tão simples e comum, mas que encerra um mundo de sacrifícios.
No Brasil já se ergueram estátuas em homenagem ao cavalo, ao boi e ao cão. Ninguém se lembrou ainda de perpetuar no bronze a figura admirável do tangerino. A êle não devemos apenas o desenvolvimento de nossa pecuária e o abastecimento de carne verde à população. Foi o tangerino no tempo do Brasil colônia, no chamado século do couro, o desbravador dos nossos sertões, para onde depois chegaria o progresso da agricultura, da indústria e do comércio. As atuais estradas de rodagem, ligando povoações e vilas, cidades e estados, o litoral ao sertão, foram caminhos abertos por eles nas matas e serras para a passagem primitiva do gado. E dos antigos currais de gado nasceram cidades. Foi, na verdade, pelos roteiros das boiadas, pelos caminhos abertos pelos tangerinos, que penetrou primeiro a nossa civilização.

tanger boi
(Percy Lau)
O TANGERINO
Octávio Pinto
AINDA não se escreveu a história dos nossos tangerinos. Poetas e cantadores já enalteceram a personalidade e a bravura dos vaqueiros. Rui e Euclides da Cunha descreveram em páginas imortais o "estouro das boiadas". Mas, tangerino continua ainda desconhecido, apesar de ter tido um passado brilhante e uma vida tão cheia de heroísmo e sacrifícios.
Quem conhece o sertão nordestino e as feiras de gado não pode deixar de admirar a figura do tangerino, que difere muito da do vaqueiro. Este é imponente e admirável em sua indumentária toda de couro, impressionando ainda mais quando esporeia o fogoso corcel que levanta as patas para o ar como se quisesse dar um salto mortal, que salta, que rodopia, que corre, ressaltando a segurança do montador. O vaqueiro é intrépido, bravo, audacioso, ágil e forte. Sabe montar com destreza e vive em correrias desenfreadas atrás dos bois, penetrando às vezes no mato fechado por onde muito mal passou o garrote bravio. No curral ou no campo laça o touro de longe e nas vaquejadas em louca disparada derruba o novilho pela cauda, num golpe audacioso e rápido, conquistando os aplausos de toda a assistência. Dai, as lendas, as histórias e as cantorias do sertão sobre a coragem e as façanhas dos vaqueiros. Até as vaquejadas são descritas com um colorido bem forte de entusiasmo e intrepidez, onde se procura a cada momento e a cada lance salientar o valor dos nossos destemidos vaqueiros. E é realmente, um espetáculo digno de admiração e louvor, que arrebata os mais vibrantes aplausos dos espectadores.
O tangerino não anda vestido de couro nem sabe montar. Traja sempre roupa comum, chapéu de palha de carnaúba, alpercatas, chicote, trazendo às costas a rede dentro de um saco de couro e os utensílios para preparar as suas refeições. Em seus trajes característicos e sua vida nômade, assemelha-se a um cangaceiro desarmado. Anda mais de um mês a pé em cada viagem, conduzindo de muito longe as boiadas para as feiras de gado, enfrentando a terrível soalheira que asfixia e que queima a terra, transformando aquela região num inferno de brasas.
E chega coberto de poeira das estradas, estropeado, sujo, barba e cabelos crescidos, às vezes esfomeado, parecendo mais um bicho do que um homem. Dorme no mato ou nos currais das fazendas onde arma a sua rede que nunca foi lavada, enquanto o gado fica pastando. Mal surge, porém, a madrugada, ei-lo novamente a caminho, cruzando estradas, atravessando rios, matas, serras e montanhas, viajando muitas vezes à noite para alcançar um pouso melhor, onde os animais encontram água para saciar a sede de uma viagem de muitos dias sem descanso.
Quando um dos bois está estropeado pelos espinhos, o tangerino calça-lhe umas alpercatas especiais, aliviando o sofrimento do pobre animal que agora já pode suportar a longa caminhada. E se sucede uma rês se extraviar do bando, o tangerino não se inquieta. Êle conhece todos os recantos do sertão e as manhas que esses bichos têm. Sabe onde a rês se escondeu ou onde ficou perdida. E vai certo ao seu encalço. Quando o boi é bravio, o tangerino coloca-lhe uma máscara de couro ou, então, amarra-lhe um pau no pescoço, deixando uma das extremidades tocar no chão, dificultando, deste modo, o movimento do animal, que é obrigado a andar devagar. Para tudo o tangerino encontra um jeito, contanto que a boiada chegue sem novidades ao seu destino. Êle sabe também o mato que o gado não deve comer e aquele que serve de remédio. E com aquela sua cantilena característica, aqueles gritos prolongados e monótonos que reboam pelas quebradas das serras, o tangerino vem trazendo de muito longe as boiadas para as nossas feiras, ganhando por esse serviço tão árduo e perigoso, salário insignificante.
Quando as feiras terminam ao cair da tarde, ei-lo de volta para as fazendas do Ceará, do Piauí, da Bahia ou de paragens mais longínquas, em busca de novas boiadas, percorrendo a pé centenas de léguas, numa faina para êle tão simples e comum, mas que encerra um mundo de sacrifícios.
No Brasil já se ergueram estátuas em homenagem ao cavalo, ao boi e ao cão. Ninguém se lembrou ainda de perpetuar no bronze a figura admirável do tangerino. A êle não devemos apenas o desenvolvimento de nossa pecuária e o abastecimento de carne verde à população. Foi o tangerino no tempo do Brasil colônia, no chamado século do couro, o desbravador dos nossos sertões, para onde depois chegaria o progresso da agricultura, da indústria e do comércio. As atuais estradas de rodagem, ligando povoações e vilas, cidades e estados, o litoral ao sertão, foram caminhos abertos por eles nas matas e serras para a passagem primitiva do gado. E dos antigos currais de gado nasceram cidades. Foi, na verdade, pelos roteiros das boiadas, pelos caminhos abertos pelos tangerinos, que penetrou primeiro a nossa civilização.