PAI CIPRIANO
Vamos contar um pouquinho desta história… Era o primogênito de uma família abastada e nobre. Herdeiro direto do trono daquela tribo, ainda bem jovem, por volta dos vinte anos, forte, saudável e cheio de vida, fui iniciado nos preceitos e conceitos religiosos do meu povo. Logo estava recebendo o “Decá” (autorização para a prática religiosa da minha tribo de origem). Foi um espanto geral! Ninguém quis acreditar. Como um menino daquele conseguira um encargo tão valoroso? Talvez por ser o filho primogênito do Chefe tribal. A partir da minha consagração as coisas começaram a ficar difíceis, Os demais membros da minha comunidade não mais me dirigiam a palavra. O ambiente foi ficando insuportável. Afastado da convivência com os outros irmãos, sofrendo discriminação e recebendo vibrações de ódio causadas pelo imenso despeito dos meus irmãos, preferi me isolar e me entreguei cada vez mais à prática dos meus ensinamentos religiosos. Num dia em que sozinho clamava aos Orixás por minha tribo, quando pedia a doce Mãe Oxum que suavizasse o coração dos meus irmãos, sofri uma terrível emboscada. E num dia cinzento, chuvoso, dia em que a tribo não participava tão intensamente do trabalho em grupo devido ao tempo, fui arrancado à força de minha maloca e levado para um lugar distante da minha Luanda, minha querida Angola… Indaguei todo tempo o que se passava, reivindicando a minha posição de membro da família real. Mas mesmo assim fui levado por uns homens estranhos que me carregaram à força, sem piedade, como se eu fosse um animal e eles os caçadores implacáveis. Ali começou o meu martírio. Mas dor maior senti ao avistar por perto três dos meus sete irmãos de sangue. Nesse momento me conscientizei da terrível traição que sofri e que deitou uma profunda ferida na minha alma.
Amarrado como um bicho, passei três dias amontoado em cima de uma carroça, onde cada vez mais eram colocados negros em grande número, uns por cima dos outros, como se faz com pele de animais. E assim fiquei, por baixo daquele amontoado de infelizes, faminto e sedento. Desespero maior eu senti ao ser retirado da carroça e jogado no porão imundo de uma grande embarcação. Dali por diante nós nos unimos em preces, dor e saudade na longa viagem ao Brasil, terra distante e desconhecida. Maltratado durante a interminável viagem, assistindo com horror cenas que jamais poderia imaginar, vi meus irmãos de raça e de religião sendo esmagados em sua hombridade; vi humilhação e revolta no olhar dos meus irmãos de destino; vi o açoite cortar impiedosamente a carne daqueles que ousavam manifestar a menor reação de revolta; vi corpos jogados ao mar e a peste se alastrar, ceifando a vida de muitos irmãos. Apesar do horror do navio negreiro consegui chegar com vida nesta terra distante chamada! pelos seus nativos de Brasil. Clamei a Olodumaré por forças, pois pensei que não aguentaria tanta fome e tanto sofrimento dentro daquela embarcação maldita que me obrigava a tomar água salgada, e de barriga inchada deixei nÁfrica distante minha juventude e alegria.
Aqui chegando, fui levado para uma feira, como as batatas compradas hoje por vocês, e vendido, pelos dentes fortes e bons que tinha, para uma rica família fazendeira de café. Dei duro dia e noite, trabalhando duro nos cangais, sofrendo mais humilhação, mais dor. “Nego Véio era humilde e obediente e tudo fazia para agradar aos senhores brancos. Logo fui recompensado pela docilidade, passando a trabalhar para Sinhá dona como escravo de dentro, “catiço” de Sinhá. Por isso, “Nego” sofreu novamente a inveja dos irmãos de cor, que passaram a maltratar o “Véio” na senzala, acusando o “Véio” de não mais pertencer àquela raiz. Como estavam enganados! Se “Nego Véio” pudesse, tirava todos das correntes do cativeiro. “Nego Véio” era apenas obediente e manso. Rejeitado por meus irmãos catiços, procurei aprender escondido com Sinhá moça, linda e formosa, as primeiras letras. “Nego Véio” esperto, logo aprendeu a ler e a escrever. Com isso, passei a fazer as anotações da fazenda. Conquistei a amizade do Sinhô e também acabei despertando, por isso, a inveja do capataz da fazenda, que era ruim “por demais”. O caminho de espinhos ainda não estava longe dos pés do Véio”, e o destino prega nos “fio” umas brincadeiras ingratas. Bonito, jovem, agora letrado, fui me enamorar por quem nunca deveria sequer levantar os olhos: Sinhá Moça! Mas foi impossível não me prender aos encantos daquela jovem formosa, de pele rosa, carinhosa e doce como uma flor sem espinhos. Até os dias de hoje, quando me lembro, suspiro. E como Zâmbi não separa os filhos por cor quando traça o seu destino, a jovem Sinhá também se encantou com a doçura do “Nego”. E o que aconteceu vocês já podem imaginar… “Véio” sucumbiu aos encantos da Sinhá e por isso mais uma vez tive o meu destino mexido e remexido. Fui arrancado, numa noite, da minha esteira, levado para um cemitério distante e lá fui abandonado. O feitor me alertou dizendo que dali não poderia mais sair. Que deveria tomar conta de todas as campas, que comesse o que conseguisse plantar e nunca mais aparecesse nem na Casa Grande, nem na senzala. Pois eu traíra a confiança do Sinhô e que ele só não me matava, porque não queria sujar as mãos com o sangue do pai do neto dele. Ali naquele cemitério, isolado e triste, eu vivi até o fim dos meus dias. Distante de quem eu amei, distante do meu povo… Passei a fazer feitiços fortes para o meu povo, que passou a me procurar quando os feitores estavam bravos com eles, quando adoeciam, quando tinham algum problema. Procuravam a minha rega, a minha magia forte. E o sacerdócio recebido na África, acabei exercendo aqui nesta terra, dentro de uma Calunga, onde fui por muitos anos o “Guardião Encarnado”! “Nego Véio” tem consciência de que não sofreu porque era bonzinho. Teve culpa passada e por isso resgatou. Quando retornei à “Pátria Espiritual”, verifiquei que não precisava, se quisesse, reencarnar no planeta Terra. Mas, como a mágoa é péssima companheira e deveria me livrar dela de alguma forma, por misericórdia do Pai a mim foi oferecida a oportunidade de trabalhar na “Lei de Umbanda” para, através da caridade e do amor, depurar esse “tiquinho” de mágoa existente. Certo dia, ao baixar no terreiro, esse “Véio” cantou: “Cipriano Quimbandeiro, chorou no cativeiro. Hoje chora de alegria o Rosário de Maria. Chora, chora, saravando Angola…”