Pombagira das Marés – duas histórias e uma vida

18/07/2018 14:00
Ela foi retirada de sua família ainda criança; sequestrada por piratas que atracaram no arpoadouro de sua Terra Natal. Eles encantaram-se com a beleza da menina de longos cabelos negros e olhos cintilantes. Sua família nunca mais a viu ou ouviu falar dela. Na época, início do século XVII, ela tinha 15 anos e estava vendendo os frutos produzidos na propriedade de seus pais, junto ao cais do Porto de Marselha. Foi a última vez que viu a França e foi a última vez que soube o que é pureza… Não se jogou ao mar, pois era muito devota de Nossa Senhora, em todas as suas formas e aparições e acreditava em milagres.
Todas as noites rezava por alguma coisa que pudesse salvá-la desse destino. Ela era escrava sexual dos piratas, cozinheira, faxineira e realizava outras atividades que lhe eram impostas. Desde o dia em que foi retirada de sua terra, nunca mais falou ou sorriu ou derramou uma lágrima sequer. Apenas rezou todos os dias, pedindo a Deus clemência e misericórdia para seus dias cheios de dor e angústia. Quando faziam dois anos que estava a bordo do navio e já haviam viajado meio mundo; alguns piratas passaram a tratá-la com respeito e carinho e nunca mais a tocaram. Isso apazigou seu coração.
Então, um dia, eles aportaram em uma terra nova, diferente, cheia de pessoas mestiças, de pele escura, tatuadas, pintadas ou enfeitadas com penas de aves. Disseram a ela que essa terra era a América.
Ela se encantou com o lugar, com a natureza, com as pessoas, enfim, com tudo… Era diferente, colorido, fresco e, pela primeira vez, ela sorriu. Foi quando viu no meio das folhagens alguém a observando: era Tupiniquim, filho do Chefe Guaracy, dos Kaingangs. Ele sentiu em seu peito que Chefe Tupã o chamava para aquela moça e que ela era sua prometida. Observou durante o dia todo o movimento do navio e entendeu que ela era uma prisioneira, pois viu seus pés acorrentados. Sentiu seu coração triste e uma dor aguda congelou sua alma. Ele tinha que salvá-la!
Durante a noite, reuniu-se com seu pai, o Cacique da Tribo e narrou os fatos. Chefe Guaracy falou que índio não interferia em negociação de homem branco, ainda mais “aqueles homens” da bandeira negra do navio (piratas). Tupiniquim, não se amedrontou, reuniu seus amigos guerreiros e espreitou por mais um dia. Percebeu que, em determinados horários, ela ficava sozinha próximo a uma fogueira, preparando alimentos. Ele aproveitou essa distração dos piratas e avançou com seus amigos sobre a moça, agarrando-a e colocando-a sobre seus ombros. Saíram em disparada para as matas e levaram ela para a Oca da Mulheres, na Tribo Central. Os piratas nem viram o que aconteceu, pensaram que algum bicho selvagem pegou a moça. Tupiniquim explicou às índias que aquela moça era prisioneira do homem branco, mas não era como eles e pediu que a tratassem e a cuidassem.
Pela primeira vez, depois de tantos meses, ela sentiu que alguém a olhava como uma mulher e como uma igual. Deixou que a banhassem, que a trocassem e que a limpassem. Curaram suas feridas, lhe medicaram, lhe alimentaram, lhe acarinharam. Ela nunca havia chorado desde que saiu da França mas, naquele dia, todas as lágrimas saíram de seus olhos e ela chorou muito… Chorou de tristeza, de desespero, de medo, de raiva, de incompreensão e de insegurança. Apenas chorou, nada disse, mas as índias entenderam, pois desde que o homem branco havia chegado àquelas terras, elas já tinham ouvido falar de muitas histórias sobre sua selvageria. E ainda diziam que os índios eram os selvagens!
Ela esqueceu seu nome para sempre (Nádja) e aprendeu uma nova língua: o tupi-guarani. Chamaram-lhe de Jacy, por causa de seus cabelos longos e negros. Começou a ajudar as índias em seus afazeres e logo tornou-se uma delas. Estava feliz. Era livre… Pensou em seus pais e rezou a Deus por eles. De vez em quando, Tupiniquim lhe trazia uma flor, uma fruta ou uma pena de ave colorida e aos poucos eles foram se aproximando. Chefe Guaracy disse a Tupiniquim que ele deveria casar com uma índia e não com moça de outra raça, mas ele disse ao pai que seu coração já pertencia a ela, desde o dia em que a viu.
Quando fazia um ano que ela estava entre os índios, Tupiniquim lhe pediu em casamento. Ela teve medo, não era mais moça e sofreu muitos maus-tratos. Tupiniquim disse que não se importava e entendia tudo, ela não precisava falar nada. Ela aceitou. Chefe Guaracy celebrou a união junto com toda a Tribo e o Pagé Sagui. Foi uma festa! Todos os índios já gostavam de Jacy, pois ela uma moça boa e meiga. Eles só não entendiam porque ela olhava tantas vezes para o Céu e ajoelhava-se… Então, um dia, ela disse porque fazia isso: estava rezando para o seu Deus e Nossa Senhora. Explicou para os índios quem eles eram… Os índios falaram de Tupã, que era Deus, de M’Boi que era o filho dele e de Jacy, sua esposa… Falaram pra ela que ela parecia com Jacy e por isso recebeu esse nome. Então Nádja, entendeu que Nossa Senhora sempre cuidou dela, mesmo em outra nação, com outro idioma e com outra crença. E ela sentiu-se protegida e agradecida.
Jacy e Tupiniquim tiveram 8 filhos: quatro meninos e quatro meninas. Criaram todos livre e iguais. Com o tempo eles embrenharam-se mais nas matas para fugir do homem branco e das invasões. Jacy já era uma nativa indígena e esqueceu seu sangue europeu. Foi feliz nessa terra. Ela e Tupiniquim morreram abraçados na mesma rede, na Oca em que construíram. Já tinham dezesseis netos e dois bisnetos. Os índios diziam que eles eram almas prometidas e que os deuses os uniram no mesmo local.
Quando despertaram do outro lado, Tupiniquim tornou-se um Chefe Guerreiro que ajudou os falangeiros espirituais na luta contra a opressão e a escravização. Jacy (Nádja) foi convidada a trabalhar como falangeira socorrista de Maria Madalena, em nome de Nossa Senhora. Os dois atuariam em campos diferentes, mas poderiam sempre se ver e se auxiliar. Assim, temos Tupiniquim: um Caboclo Chefe de Direita, atuando na Linha de Oxóssi e Nádja, uma Pombagira da Linha das Águas, mas que pode, ocasionalmente, atuar na direita como Cabocla Jacy. Ela é uma entidade de dupla ação e dupla energia e pode trabalhar “cruzada”, como falam nas giras.

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